
VI – Assim é o Homem: Mesquinho e Violento –
(o Menestrel, pela primeira vez interferindo diretamente na ação, pára a tortura com um gesto; sobe ao trono/púlpito de Inês altar e começa a falar. O tom de sua voz é judicioso)
MENESTREL
Assim é o Homem:
Mesquinho e violento,
Com seus horrores pequenos e suas lutas pessoais.
Assim é o Homem: mesquinho e violento,
Cheio de volúpias indizíveis e pecados mortais.
Assim é o Homem: mesquinho e violento;
Tão capaz de inventar códigos e tão incapaz de respeita-los.
E aqueles que sãos senhores do mundo; são senhores porque o são;
E serão senhores do mundo até que o sejam.
E far-se-ão sistemas e doutrinas,
Mas jamais se saberá que motivos os movem,
Nem que angústias e desesperos os tocam,
Mas humanos; humanos são,
Mesquinho e violentos.
Não vamos, no entanto, condená-los,
Pois quem saberá que compulsões os tragam.
(pega no altar uma hóstia)
PEDRO
Eu me sirvo do pão,
O gosto do pão é insuportável.
MENESTREL
E no entanto ele se serve do pão.
PEDRO
Eu me sirvo do pão.
(o Menestrel serve a hóstia a Pedro, que a prova)
PEDRO
Eu me sirvo do vinho,
O gosto do vinho é insuportável.
MENESTREL
E no entanto ele se serve do vinho.
PEDRO
Eu me sirvo do vinho.
(o Menestrel oferece o vinho a Pedro, que o prova. Inês, sobre o altar, abre os braços como cristo)
Eu me sirvo do pão e não há quem do pão me sirva,
O gosto do pão é insuportável, e, no entanto, eu me sirvo do pão;
Eu vou até o pão e o devoro com mil bocas desesperadas,
Eu não sinto fome mas preciso em servir do pão.
Eu me sirvo do vinho e não há quem do vinho me sirva,
O gosto do vinho é insuportável, e, no entanto, eu me sirvo do vinho,
Eu vou até o vinho e o sorvo com mil gargantas desesperadas,
Eu não sinto sede, mas preciso me servir do vinho.
(baixo)
Ah, Inês, alma gentil que te partiste,
Tão cedo dessa vida descontente...
ASSASSINO II
Cessa o pranto, Pedro,
Cessa a reza,
O que está feito está feito, feito e acabado.
(olha para as próprias feridas)
O que não tem remédio, Pedro,
Remediado está.
PEDRO
(como se justificando)
Não houvesse eu provado o fel do amor,
Não teria para mim o seu sangue um sabor tão suave.
Não houvesse eu provado o fel do amor,
Não teria eu meus músculos retesados permanentemente
Como sempre adivinhando uma emboscada,
Não sentiria um refrigério n’alma cada vez que me recordo,
Não teria essas plantas ruins me crescendo no ventre,
Nem essa dor permanente nos olhos;
Como eterno assombro de despertar.
(se esquece do Assassino II e volta-se para Inês)
Não houvesse eu provado o mel do amor,
Não adivinharia seu cheiro entre os cabelos,
Não sentiria esse calor nas faces,
Não sentiria essa vontade de arrancar da morte o seu espesso véu de terra,
E de manchar no cal perpétuo dos teu lábios minha boca.
Não houvesse eu provado o mel do amor;
Não adivinharia sua pele nas tramas em que me deito.
(grita)
Ai de mim!
Que a História grave os meus horrores,
Que Portugal escute os meus gemidos!
E que toda Portugal se ponha em negro!
MENESTREL
E Pedro se ajoelhou e chorou as suas dores.
ASSASSINO I
A morte está aí para todos.
Agora Inês é morta;
Amanhã estarei eu morto.
Mas a História vai chorar por Inês;
A História vai chorar por Inês, mas meu filho vai chorar por mim!
Sua vingança estará consumada, mas quem vai consumar a minha vingança?
Sobre mim se abate a dor do rei;
A mágoa do rei se abate sobre mim com mil garras e chicotes,
A mágoa do rei me acerta a carne com mil esporas,
A mágoa do rei me lacera,
Me lapida,
Me viola,
Me crucifica,
Me queima,
Me pinga chumbo derretido nas costas,
Me salga as feridas e me lambe com navalhas.
Mas que pode a minha mágoa e a mágoa de meu filho?
Se abaterá sobre o Carrasco, esse mensageiro da desgraça?
E, morto o Carrasco, seu filho matará meu filho,
Aí, o encargo d morte estará sobre meus netos;
E assim será, geração em geração,
E nossos descendentes estarão entupidos de sangue até as narinas
Enquanto os filhos dos reis reinam soberanos e intocados.
MENESTREL
E o Primeiro Assassino se ajoelhou e chorou suas dores.
ASSASSINO II
Todo mundo morre.
Primeiro o corpo perde a força que o sustinha,
As pernas não agüentam mais com o peso, e o corpo se encontra com o chão.
O cérebro, lugar onde morava este cavalo elétrico da alma,
Não é mais que um monte de carne de textura desagradável.
O sangue não corre mais pelas veias, mas desliza traiçoeiramente pelas bordas da ferida.
O pulmão não mais respira, se esvazia de um sopro só;
Por isso, quando o ar passa pela garganta, o morto solta ainda um último gemido.
INÊS
(suave)
Os músculos relaxam deixando escapar a substância humana não-vista.
A morte revela aquilo que estava dentro do corpo e que quisemos toda vida disfarçar.
ASSASSINO II
O corpo, ainda morno e mole, tem palidez de cera.
Seis horas depois, o cadáver enrijece sob efeito do ácido lático que se acumula nos tecidos.
INÊS
O cabo de um dia aparece a lividez cadavérica:
Manchas vermelho escuras se espalham sobre o corpo.
Logo o corpo começa a necrosar.
ASSASSINO II
Não é sem motivo que aqueles que amaram essa massa amorfa e sem vida se afastam,
Escondendo-a sob sete palmos de terra e pesadas pedras de mausoléis;
Não há amor que possa suportar o horror da morte.
INÊS
Logo começa a produção de líquidos pútridos, que, dizem os soldados,
Tem o cheiro do inferno.
Se não descansa na paz do senhor; as moscas azuis se juntam ao cortejo.
ASSASSINO II
As moscas azuis são as amantes dos mortos.
INÊS
Os vivos desconhecem o sabor dos seus beijos.
ASSASSINO II
Logo, largas manchas verdes começam a tomar o abdome,
A pele resseca
E dos pelos e dos cabelos,
Que em vida foram alvo de tantas vaidades,
Não resta senão um ou outro tufo.
INÊS
As células nervosas, o mapa desse cavalo elétrico da alma,
Não duram mais que alguns minutos.
O fígado ainda dura três semanas.
O coração e o útero, somem entre o quinto e o sexto mês,
E o morto já não tem mais sexo.
A água volta ao solo, onde será mais útil do que foi para nós.
No fim de um ano sobram-nos somente os ossos.
No fim de cinco anos os ossos se desunem, e daquilo que fomos não resta senão a memória.
ASSASSINO II
A única coisa que nos faz diferentes dos abortos e das pedras são os nossos dentes,
Estes sim, duram uma eternidade.
MENESTREL
E então o segundo assassino não se ajoelhou e não chorou as suas dores.